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Ícone da soul music no Brasil

O adeus a Tony Bizarro, parceiro de Tim e voz de trovão do soul brasileiro | Tab UOL

 
Capa do disco

Capa do disco ‘Nesse Inverno’ (1977), do cantor Tony Bizarro Imagem: Reprodução

Foi Tim Maia quem converteu Tony Bizarro à religião do soul. Era a segunda metade dos anos 1960 e o cantor de “Primavera” espalhava a palavra do estilo norte-americano a toda e qualquer pessoa. Roberto Carlos estava entre os que abraçaram os grooves balançantes e a metaleira em brasa. Já Bizarro fez do soul uma missão de vida.

Luiz Antônio Bizarro, descendente de italianos, nascido na Mooca, morreu na segunda-feira (31), aos 73 anos. Internado em uma casa de repouso no Tucuruvi, na zona norte da capital, sofreu um ataque cardíaco fulminante, segundo disse ao TAB sua irmã, Yara Bizarro. Durante a pandemia, contraiu covid-19 e teve pneumonia. A imprensa noticiou que ele sofria de Alzheimer, mas a irmã nega a doença.

Durante toda a década de 1970, Bizarro atuou como peça-chave da soul music brasileira, um movimento diverso que incluía da “sofrência” doce de Hyldon ao vigoroso samba-soul da Banda Black Rio. Cambiando os chapéus de produtor, vocalista e compositor, Bizarro trabalhou com nomes como Hyldon, Azymuth, Robson Jorge e Lincoln Olivetti e Tim Maia.

Escalada do sucesso

“É tudo culpa do Sebastião”, ele diria em uma de suas últimas entrevistas, em 2017. “Muita gente entrou nesse caminho pelo Tim. Quando ele chegou dos Estados Unidos, chegou com essa coisa nova, esse som novo. Não tinha como a gente ouvir aquele tipo de som que ele trouxe, não tocava em lugar nenhum. A Rádio Difusora de São Paulo tocava alguma coisa assim, mas era informação muito vaga, diferente de como era com o Tim apresentando ‘mermão, aqui é o seguinte, Si Menor, Lá Maior’. Ele foi ensinando a rapaziada.”

Hyldon, célebre pelo hit “Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda (Casinha de Sapê)”, conta que conheceu Tony Bizarro no Solar da Fossa, um casarão dividido em dezenas de apartamentos em Botafogo (no terreno onde hoje está o Shopping Rio Sul) em que moraram personalidades como Caetano Veloso, Gal Costa e Ruy Castro. “Ali só ficava artista, jornalista, pessoas que não tinham fiador. Para morar ali, só com indicação”, contou Hyldon.

Nessa época, Tony Bizarro formava com Fortunato Arduino a dupla Tony & Frankye. O primeiro e único álbum da empreitada saiu em 1971, produzido por um então desconhecido Raul Seixas. O disco já investia no soul, mas a imagem da capa mostra dois rapazes de aparência comportada. Por pouco tempo: Tony teria suas primeiras experiências com LSD e maconha nessa época.


Capa do disco ‘Tony & Frankye’, da dupla Tony Bizarro e Frankye Adriano – Reprodução – Reprodução

Jairo Pires, diretor artístico do selo Polydor que coordenou o primeiro álbum de Tim Maia, percebeu logo o talento do músico. “Ele fazia muito vocal e comecei a perceber sua qualidade. Tinha ouvido absoluto e era muito bom músico. Coloquei ele em trabalhos de produção, pois tinha ótimas ideias para arranjo”, relembra Pires.

Ivan Conti, o Mamão, baterista do Azymuth, se recorda desses tempos de intensa atividade de estúdio, quando músicos eram contratados com bons salários e em regime de CLT pelas gravadoras. “O produtor, se não souber lidar com um músico, é um problema. Ele não, ele ficava tranquilo”, recorda. Durante a gravação de “A Lua e Eu”, clássico de 1975 do cantor Cassiano, o baterista ameaçou abandonar a sessão diante da interminável indecisão do artista. “O Tony disse ‘fica por mim, por favor’. Eu fiquei por minha amizade a ele.”

Grandalhão e forte, lutador de judô, Tony Bizarro era uma presença física impossível de ignorar. “Era estourado, coisa de sangue italiano, mas tinha o coração do tamanho de um bonde. Queria ajudar todo mundo”, contou a irmã Yara Bizarro ao TAB. Para seus amigos da música, tinha espírito conciliador e tranquilo, sendo habilidoso em lidar com temperamentos artísticos difíceis.

Na frente do microfone, aparecia outro aspecto da força de Tony. “O cara entrava que nem um trovão”, comparou o DJ Sylvio Muller, amigo pessoal do músico desde a década de 1980, quando o artista se mudou do Rio de Janeiro para São Paulo.


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Epidemia soul

Na primeira metade dos anos 1970, o soul e o funk norte-americanos se alastraram pelo Rio de Janeiro, incendiando bailes de subúrbio frequentados por milhares de jovens negros. Adotando visual e atitude de ícones como James Brown e Isaac Hayes, massas dançantes ofereciam espetáculos de dança e orgulho negro a cada fim de semana.

Aficionados pelas sonoridades vindas dos Estados Unidos, músicos como Tony Bizarro, Gerson King Combo, Cassiano, Hyldon e a Banda Black Rio ofereceram a contrapartida brasileira. “A gente gostava da soul music por causa da levada, do bumbo, o baixo na frente, um som de preto”, afirmou Hyldon. “Era soul music o que a gente gravava, mas com uma pitada daqui, a base era brasileira. ‘Gostava Tanto de Você’ [de Tim Maia] é um samba!”

Jairo Pires: “Era algo que chamava muita atenção da garotada, o balanço. As pessoas ouviam e dançavam e gostavam muito. A Rádio Mundial tocava muita soul music, tinha o DJ Big Boy, que estava na rádio e fazia bailes de muito sucesso. Daí veio o Tim Maia com tudo e a coisa explodiu”. Bizarro e seus colegas do soul percorriam o território suburbano carioca se apresentando nos bailes.

O estouro dos bailes acontecia em meio à ditadura militar. Algumas autoridades passaram a ver com desconfiança o movimento black, chegando a suspeitar que havia infiltrados da organização militante Panteras Negras por trás das caixas de som e cabines de DJ.

Tony Bizarro, junto com outros artistas, é citado em pelo menos um documento do SNI (Serviço Nacional de Informação, órgão de inteligência da ditadura). A peça descreve um baile em que ele se apresentava e onde jovens se cumprimentam “com os punhos cerrados, fazendo saudação idêntica a do negro norte-americano”. O documento foi recuperado pela pesquisadora Marize Conceição de Jesus em sua tese de doutorado, que deve ser concluída em 2022 e estuda o olhar do SNI sobre o movimento negro.

De enquadro a Chacrinha

Foi um encontro com a polícia que inspirou o que é talvez a música mais conhecida de Tony Bizarro. No início dos anos 1980, Tony e os amigos de estúdio e balada Robson Jorge e Lincoln Olivetti tiveram seu Fusca parado pela polícia na Barra da Tijuca depois de uma longa sessão de estúdio. Os rapazes e o carro foram revistados em busca de drogas, mas nada foi encontrado. Liberados, um deles teria dito “Estamos livres!”. No que Tony, já pensando na sonoridade, emendou “Estou livre!”. O trio seguiu para a casa de um deles e a música foi composta. Lançada como compacto em 1983, com produção de Lincoln Olivetti, foi um sucesso de rádio e pista de dança que levou Tony a se apresentar no programa de TV “Cassino do Chacrinha”, da TV Globo.

Foi um último momento de estrelato. Nessa época, a nova onda do rock nacional, com Blitz, Lulu Santos e Paralamas do Sucesso, colocava o soul e funk brasileiros na posição de música da geração anterior. A onipresença de Lincoln Olivetti como arranjador e produtor da música brasileira, de Gal Costa a Rita Lee, apontava para um esgotamento da sua sonoridade.

Ao fim da década de 1980, Tony era mais um nome esquecido da música brasileira. Mudou-se para São Paulo e abriu uma pizzaria no Ipiranga. Os DJs da cidade, no entanto, foram buscá-lo no ostracismo. O veterano do hip-hop DJ Hum promoveu um show com Tony e outros artistas. Ao mesmo tempo, os DJs Gregão e Sylvio Muller, responsáveis por muitos remixes de artistas do pop nacional da década de 1980, convidaram Tony para uma regravação do clássico “BR-3″, de Tony Tornado, lançado em 1991.

Depois desse período, a carreira de Tony Bizarro se tornou cada vez mais errática. Havia limitações físicas, decorrentes do consumo de dois a três maços de cigarro diários. E havia a própria dinâmica da indústria musical brasileira, onde oportunidades para artistas mais velhos se tornam raras. A voz de trovão sobrevive em suas gravações históricas, cultuadas por músicos, DJs e colecionadores no Brasil e no exterior.

Fonte: Tab UOL

   

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