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Revisitando Meus Clássicos: Hyldon – Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda | Monkeybuzz

 

Há 45 anos, Hyldon, já prestigiado como produtor e confiando em seus hits, peitou a gravadora para lançar seu disco estreia; com sucessos como “As Dores do Mundo” e a faixa-título, o álbum virou um clássico – que ele destrincha para o Monkeybuzz.

 

Revisitando Meus Clássicos é um quadro no qual os próprios músicos destrincham grandes álbuns e pérolas escondidas de sua discografia.

 

Mesmo antes de lançar seu primeiro disco, Hyldon sempre teve certeza de que suas composições, baseadas em um Soul com toques de MPB (ou o contrário), seriam populares. A gravadora em que ele trabalhava como produtor e multi-instrumentista pensava diferente.

Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda, de 1975, demorou quase dois anos para ser lançado. Depois de emplacar diversos sucessos como produtor, o baiano, que cresceu no Rio de Janeiro desde os sete anos de idade, teve de gravar dois compactos e peitar o presidente da gravadora para que o disco de estreia, enfim, saísse.

Hoje, ao ouvir a faixa-título ou “As Dores do Mundo” tocando em qualquer cidade do país, é possível dizer quem estava certo. Ao Monkeybuzz, Hyldon conta como foi produzir seu grande clássico e revela suas (várias) inspirações.

É seu álbum de estreia, aos 24 anos, mas você já tinha gravado coisas antes. Qual o contexto desse disco? Como chegou até ele?

Eu tenho um primo – tinha, que ele faleceu – o Pedrinho [da Luz], dos Fevers. Era um cara que, pô, gostava muito de mim, me levava pra assistir à Jovem Guarda em São Paulo, a primeira guitarra que eu tive foi dele. E ele me incentivou, quando eu tinha uns 13 anos, a fazer um conjunto de garotos, chamado Os Abelhas. Eu tinha escutado os Beatles e ficado maluco. Já gostava de Elvis Presley, Little Richards, Ray Charles e gostava muito também de música nacional. Mas a primeira música que eu compus foi uma música dos Beatles. “Eight Days a Week”? Alguma coisa assim. Comecei [a fazer] músicas e fiz uma para a abertura do baile. Os bailes dos Fevers eram os melhores bailes que tinham. A coisa era foda, cheiaço, quatro horas de baile, só sucesso. Foi uma escola boa fazer esses bailes porque eu tocava de tudo, né? E fui conhecendo os produtores. Numa dessas, mostrei minha música para o Jairo Pires, produtor, chamada “Eu Me Enganei”. Aí, gravei a primeira música com 16, 17 anos com um cantor chamado Robert Livi. Eu dei maior sorte porque ela entrou no As 14 Mais, um disco de coletânea em que eles colocavam duas músicas do Roberto Carlos, para atrair. E colocava Renato e Seus Blue Caps, uma porrada de gente, Jerry Adriani…

Aí que veio a oportunidade de gravar um disco só seu?

Não! Ihh, tá longe ainda. Eu gravei essa música e ganhei um dinheiro violento. Não podia nem assinar porque era menor, o Pedrinho assinou. Aí, um dia – mais ou menos nesse período – o guitarrista, Almir, faltou na gravação dos Fevers e alguém falou: “bota o Hyldon aí”. Gravei a primeira, fui aprovado e, a partir desse momento, passei a ser sub dos Fevers. Eu vi que havia duas maneiras [de gravar] naquela época: ou você se submetia a um empresário e era galã, tipo Wanderley Cardoso ou Jerry Adriani, e fazia aquelas músicas mais comerciais, ou você tentava entrar por dentro da gravadora. Eu fui assim, Tim Maia foi assim, Raul Seixas foi assim. Eu tava gravando com um monte de gente: Wanderley, Jerry, Simonal, Tony Tornado. Daí passei para a produção. Conversei com o Jairo: “Você tá sem produtor, eu tô a fim de produzir porque quero gravar meu disco”. Ele: “Não, você grava seu disco quando estiver pronto”. Então eu fui fazendo disco. Chegou um ponto que, dos dez discos [mais vendidos] da Polygram, eu estava em quatro ou cinco. Era o produtor que mais vendia da companhia. E que que eu fazia? Já começava a chamar os caras que eu queria gravar: o Mamão [bateria], o Alexandre [Malheiros, baixo] e o Zé Roberto [teclados], o Azymuth. Aí, um dia fui lá e gravei três músicas: “Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda”, “Meu Patuá” e “Eu Gostaria de Saber”. Virei pro Jairo: “Gravei”. “Como assim tu gravou?” “Cara, tu falou pra eu gravar, eu gravei. Já que eu gravei, deixa eu colocar logo as cordas.” Falei com o Waldir [Arouca, trompetista e arranjador] e fiz essa parada. Comecei a tocar pra caralho.

Isso virou o primeiro o compacto, né? Em 1973. Teve uma confusão antes de sair o disco, é verdade? Ele só foi lançado em 1975.

Cara, eu gravei as três músicas e o André Midani, o presidente – que Deus o tenha, que ele faleceu ano passado, eu até fiz as pazes com ele – quando ele ouviu, falou que “Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda” era uma das melhores coisas que aconteceram na música brasileira nos últimos dez anos. Cara, eu fiquei… “Graças a Deus, agora eu vou gravar o resto”. Eu tinha quase 30 músicas arranjadas, prontas pra gravar. Eu ficava o dia inteiro fazendo os arranjos, fazendo as músicas, tava no auge da minha juventude, né? Passou uma semana, o Jairo veio falar comigo… Pô, esse foi o pior dia da minha vida. Depois de tudo isso, dos elogios e tal, o André Midani teve uma ideia sensacional. “Ele quer fazer um trabalho fifty-fifty: você vai gravar metade em português, metade em inglês. Já tem até a música: ‘Angie’, dos Rolling Stones.” Cara, eu fiquei muito puto. Queria dar porrada no André Midani, nego me segurou. Puta que pariu. “Leva o disco pra casa.” Era um disco inglês em 45 [RPM], não tinha saído ainda aqui. Botei o disco pra ouvir. Eu não gostava muito de Rolling Stones, tem aquilo de Rock meio pesado. Tem os riffs do cara, mas não tem swing, fica aquela porrada na batera… Pô, eu não gosto. Mas ouvi, ouvi, ouvi. “Eu gravo melhor do que esse cara. Vou gravar porra nenhuma.” A gente novo é muito pretensioso, né? [risos] “Avisa pra ele que eu não vou gravar.”

Bateu o pé.

Bati o pé. Meu irmão, o André Midani ficou puto e começou a brecar meu LP, já tinha gravado as 20 músicas. O disco ia pra fábrica e voltava. O Heleno de Oliveira, diretor comercial, falou: “Pô, lança o cara. Não podemos perder o produtor, é o que mais fatura na gravadora”. Aí, lançaram o segundo compacto [em 1974] e explodiu “As Dores do Mundo”, comecei a tocar pra caramba. Fiquei em primeiro lugar das paradas…

Só depois disso tudo saiu o LP, em 1975?

Aí, liberaram o LP. Eu tinha mais umas 20 músicas. [Mas] tava em plena ditadura. O João Carlos Miller, advogado, mandou me chamar: “Olha, nós estamos com um problema com uma música tua, ela foi censurada.” Pensei: foi censurada “Guitarras, Violinos e Instrumentos de Samba”, é uma música que fala um monte de coisa. Mas sabe qual era?

Qual?

“Cuidado Pra Não Virar Jazz”, que eu fiz pro [pianista] Hélio Celso e não tinha letra. Era só [cantarola a melodia], aí no final: ”cuidado pra não virar jazz” e tinha um jazzinho. [emula jazz] Os caras censuraram essa música, cara! Ele virou e falou: “Mas isso não é problema. Já que não tem letra, vou providenciar as passagens e a gente vai até Brasília falar com o censor.” Eu era cabeludaço, né, doidão, falei: “Ô, João Carlos, essa música pra mim já não está no disco. Para mim ela não existe mais.” [risos] “Eu que não vou lá pra Brasília, porra, tô fora.” Aí saiu mais uma música. Mas eu tinha 20, acabou que muitas rápidas saíram e as baladas ficaram.

“Eu vi que havia duas maneiras de gravar naquela época: ou você se submetia a um empresário e era galã, tipo Wanderley Cardoso ou Jerry Adriani, e fazia aquelas músicas mais comerciais, ou você tentava entrar por dentro da gravadora. Eu fui assim, Tim Maia foi assim, Raul Seixas foi assim”

Tem várias baladas e é um disco muito swingado, dançante. O que você ouvia?

Eu ouvia muita música negra. Temptations, Marvin Gaye, Stevie Wonder. Ouvia música mineira também, Clube da Esquina… Crosby, Stills, Nash & Young. Quando eu fui tocar com o Tony Tornado foi muito bom pra mim, porque ele era um cara jazzístico total, me apresentou uns acordes, João Gilberto. Mas isso aí é uma coisa que eu tenho comigo, eu sempre fui bom de ritmo. Quando eu conheci o Cassiano, já tava ligado em música negra. Tenho muito ritmo, muita mão direita, muito swing, é uma coisa natural. Porque música você pode aprender, mas swing nasce com você. Também pelo fato de eu vir de baile, ter formação de rádio, de música popular. Pô, meus ídolos são de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro a Stevie Wonder e Marvin Gaye. Então é uma mistura disso tudo, sabe?

Essa mistura já aparece na faixa de abertura, “Guitarras, Violinos e Instrumentos de Samba”. Ela é autoexplicativa, uma ode a essa mistura ou uma provocação?

Não, eu sou isso mesmo, de misturar. Essa música o arranjo é todo meu, praticamente. Tem quatro cuícas, cara, os quatro melhores cuiqueiros da época. [Na gravação,] eu falei: “Agora é o seguinte, quando chegar no final solo de cuíca!” E o violino também já tava no arranjo. [emula um violino]

Quando você compõe, já tem esse arranjo todo na cabeça?

Tudo. Até hoje eu sou assim: tento fazer a música pra pessoa fechar o olho e imaginar alguma coisa, viajar. E essa parada múltipla de produção, tocar, trabalhar com orquestra é uma coisa que, quando eu faço uma música, penso nela já pronta. Por exemplo, “As Dores do Mundo” eu já tinha a introdução. [cantarola a introdução] O violino fazendo ali… Essas coisas eu aprendi vendo, não aprendi em escola. Mas o que eu fiz, que o Tim também fez: peguei [para orquestrar] o Waldir Arouca, trompetista, um cara que escrevia muito e era muito humilde, gostava da gente. Porque também tinha isso: o pessoal que sabia mais torcia o nariz pra gente. Cabeludo… Sabe qual é? Tinha um preconceito, assim. Estamos falando dos anos 70, né, cara?

É um disco de amor, né?

É super romântico.

Isso ajudou a estourar? É a sua grande inspiração para compor?

Hoje em dia, não. Naquela época. Eu sempre fui apaixonado, sempre fui romântico, desde pequeno.

Esse tema está em várias músicas, “Acontecimento”, “Vida Engraçada”, “Meu Patuá”…

Eu vou falar baixo pra você, porque minha esposa tá aqui em casa, estamos na quarentena. Esse disco tem umas cinco, seis musas maravilhosas. Porque cada música tem uma história e são histórias verdadeiras.

Vamos lá, “Vida Engraçada” é de dor de cotovelo?

Era uma menina que trabalhava na gravadora e a gente começou a sair. Só que eu não tinha o sentimento por ela que ela tinha comigo. Ela era recém-separada e tal, tava carente. Aí se apaixonou, né? Eu era um moleque bonito, novinho, pô. Já morava sozinho, tinha carro… Era um cara bem realizado, sabe? Tem essa aí. Tem outra que é a musa de “Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda” e d’As Dores do Mundo”, uma menina chamada Gioconda.

A mesma nas duas?

É, acho que até tem mais… Mas eu fiz “As Dores do Mundo” porque aquele cara era chato pra caralho, aquele [filósofo alemão Arthur] Schopenhauer. [risos] Foram dois livros que me marcaram: Cartas Para um Jovem Poeta, do [poeta tcheco] Rainer Maria Rilke, e As Dores do Mundo, do Schopenhauer – o maestro Ian Guest que me deu. Aí eu fiz a música. “Vou fazer uma música pra mandar esse cara tomar no cu, pô. Que negócio é esse de não acredita no amor?” [risos] Eu quis dar uma cutucada nele.

“Eu fiz ‘As Dores do Mundo’ porque aquele cara era chato pra caralho, aquele Schopenhauer [risos]”

É também um disco com uma conexão forte com a natureza, sobre uma vida mais simples. “Na Sombra de uma Árvore”, “Vamos Passear de Bicicleta”. Qual a sua relação com o campo? Tem o costume de compor na natureza?

Eu sou apaixonado por passarinho, por céu, por cores… Eu tenho uma ligação muito forte com a natureza, com o mar. Amo planta, amo passarinho solto. Então esses elementos entram na minha música. “Na Sombra de uma Árvore” tem um passarinho ali que é sabiá-laranjeira.

“Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda” acabou virando uma das suas baladas mais famosas, com metal, teclado. E podemos dizer que une esses dois temas principais do disco, a música romântica e a natureza.

Exatamente, é isso. Eu sempre tive uma sorte que os vocais com quem trabalho são muito bons. Nessa, dei uma sorte danada que participou uma americana… Sheila Wilkerson. Ela cantava muito, cantava muito. Para você ter uma ideia, ela participou do Innervisions, do Stevie Wonder, o nome tá lá na ficha técnica. Ela tava aqui na época da gravação, chamei pra gravar. Por isso que o “tchu tchu tchu ru tchu” tem uma pegada de negão, tem um vibrado. Ela que organizou as vozes.

Você falou que fez para várias musas, uma delas é citada. “Eleonora” é uma referência direta ou é inventada?

Não, é Eleonora Oiticica, sobrinha do menino. É uma menina que eu tava apaixonado, fiz essa música na praia em Ipanema. Ela ficava na minha frente, assim, tapando o sol… Mas depois não deu certo, ela acabou ficando com outro cara.

Ficou a música.

É… Pra você ver a vida como é que é: quando eu fiz o disco Soul Brasileiro [2009], o fotógrafo era sobrinho dela, da família Oiticica, do [artista plástico] Hélio Oiticica, que a mãe dela era irmã.

Já que estamos nesse tema, “No Balanço do Violão” é uma música de xaveco? Essa coisa de “Esqueça todas as tristezas e caia no balanço do meu violão”.

Não, cara, é um mantra. Um mantra, assim, muito puro, na verdade. Não tem nada de xaveco. [risos] O violão tem esse poder. Nessa época, eu também eu li muita coisa do [dito monge] Lobsang Rampa, terceira visão. Fazia exercício de yoga, sabe?

“Sábado e Domingo” também tem essa pegada.

“Sábado e Domingo” também tem essa coisa, de ficar repetindo. Isso é mantra, né?

“Quando a Noite Vem”, a introdução com aqueles metais, parece uma marcha. O que você queria passar?

É, tem o negócio das trompas, né? [cantarola introdução] Aquilo ali é a noite chegando… [cantarola um pouco mais] Um desespero do caralho, uma coisa marcial. Porque a trompa dá isso. Parece aquelas coisas do castelo.

Você fecha o disco com “Meu Patuá”, que tem um arranjo muito bonito.

“Meu Patuá” eu fiz para uma menina Geiza, que depois casou com o Taiguara. Outro dia eu falei com ela, acho que nem ela sabe.

Essa também fez sucesso. Esse é um disco com um monte de hit, no fim das contas.

É, eu vacilei. Eu devia ter trabalhado mais o disco.

Em que sentido?

Trabalhado individualmente as músicas, lançado compacto antes de gravar o segundo disco.

Mas várias estouraram e ele ainda rendeu um monte de covers que também fizeram sucesso. Você gosta das gravações?

Eu gosto, acho o maior barato. As duas gravações mais emblemáticas pra mim foram a do Kid Abelha [de “Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda”, no Meu Mundo Gira em Torno de Você], que vendeu 500 mil discos e trouxe fãs de gerações mais novas para os meus shows, e, no mesmo ano, o Jota Quest estourou com “As Dores do Mundo”. Eu fiquei muito feliz com isso. Tem umas coisas que são diferentes, né? Porra, Nana Caymmi gravou “Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda” num documentário que ela fez, aí o Detonautas gravou “Na Sombra de uma Árvore”. [risos] Eu nunca imaginei. Marisa Monte, com “Acontecimento”….

E como você vê esse disco hoje?

Eu gosto dele, gosto de todos. Eu faço tudo com muito amor, com muita dedicação, sabe? Estou trabalhando muito. Hoje, trabalho sozinho. Não tenho empresário porque, pô, trabalho quando eu quero. Se tem empresário, ele quer te mandar lá pra puta que pariu. Eu gosto de tocar em Sesc, em teatro, mas não tenho mais essa fissura de fazer show todo fim de semana, ficar tocando, tocando, tocando. E se você tem um empresário você acaba ficando assim, né? E, quanto aos discos, faço meu disco, pago todo mundo, banco. Vou fazendo as empreitadas, tenho meus parceiros. É isso, cara. Obrigado aí pela conversa e assiste lá minha live, já fiz uma porrada.

Eu que agradeço pelo tempo e pelo papo.

Pô, tamo há duas horas, tô até com orelha doendo. [risos] Obrigado aí, fica com Deus.

Fonte: Monkeybuzz

 

   

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