Em ‘A Origem’, Hyldon recria o clássico Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda (Rolling Stone)

Um dos baianos mais cariocas da música brasileira, o músico comemora os 40 anos do seu disco de estreia

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Foto Divulgação – Matéria Revista Rolling Stones

Salvador, Bahia, década de 1950. O cenário era agreste e o caminhão pau-de-arara se encarregava de levar os trabalhadores para o campo. No rádio, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e Banda de Pífanos de Caruaru. Rio de Janeiro, anos 1960 em diante. Praia, calor, contato com a literatura e agito cultural, amizade com Tim Maia e a influência da soul music norte-americana.

Essa mistura improvável de experiências resultou no disco Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda, de 1975, a estreia do baiano Hyldon de Souza Silva pela gravadora Polydor. Sucesso absoluto, a ponto de, mesmo sem nenhum trabalho de divulgação, ficar no topo das paradas da época e ganhar uma nova versão no aniversário de 40 anos. “Refiz o disco como ele era dentro da minha memória, 40 anos depois. Está da forma como eu passei os sons pros músicos, a essência da música. O nome do disco é A Origem, porque dali nasceram todas as ideias”, conta Hyldon. O disco chega às lojas ainda no mês de abril.

Quando saiu Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda, Hyldon tinha apenas 21 anos de idade, mas uma experiência de estúdio de gente grande. Ele pegou uma fase em que as gravadoras lançavam discos com as covers de músicas de sucesso. Um deles foi a série Samba é uma Parada, com a banda Os Caretas, que vendia, em média 10 mil cópias – um número estrondoso para a época e para um disco de covers.

“Além disso, produzi Odair José (a guitarra no hit ‘Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)’ é de Hyldon), Wanderleia, Jorge Mautner e excursionei com Erasmo, Tony Tornado, Tim Maia… enquanto tudo isso acontecia e eu ia ganhando moral na gravadora, ia compondo e pensando no meu próprio disco”, afirma Hyldon, que também se lembra de histórias curiosas dessa época: “A gente fazia muito show de circo. Gravei quase todos os discos do Paulo Sergio como substituto dos guitarristas, que faziam baile, TV e ficavam esgotados. Ele me chamou pra fazer os shows. Só tinha um microfone no circo e eu ia com o violão só pra dar o tom pro cara… onde ele ia, eu ia atrás. E as mulheres ficavam doidas, onda da Jovem Guarda e tal… e os caras dos bairros ficavam putos, queriam bater na gente. Sai corrido várias vezes porque tava ali no meio”.

À época, Hyldon já conhecia os membros do Azymuth. José Roberto Beltrame (teclados – falecido em 2012), Alex Malheiros (baixo) e Ivan Conti “Mamão” (bateria). Experientes músicos de estúdio que migraram da Jovem Guarda para a música instrumental – o marco foi a trilha sonora para o documentário O Fabuloso Fittipaldi, de onde saiu o nome Azymuth. “O Hyldon frequentava a minha casa na Tijuca, tínhamos muitos amigos em comum… daí pra gente começar a trabalhar juntos foi um pulo”, conta Mamão. O Azymuth ainda sob o nome de Grupo Seleção, gravou alguns dos discos de covers que Hyldon produzia e caiu no Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda: ”Nossa parceria foi muito colaborativa, a gente já estava muito entrosado”, completa Mamão.

Quando já tinha 20 músicas prontas, Hyldon avisou o diretor da gravadora, Jairo Pires, que autorizou a gravação. André Midani, então presidente da companhia, sugeriu que Hyldon gravasse uma versão. A escolhida era “Angie”, dos Rolling Stones. Nesse momento, Midani também conheceu a personalidade forte do jovem Hyldon. “Fiquei puto! Queria brigar com o Midani, me seguraram… queria ir à sala dele. Não gravei e foi uma situação desagradável. Dos 10 discos mais vendidos da gravadora naquele momento, eu tinha produzido quatro”, conta Hyldon. O disco de estreia dele ficou oito meses indo e vindo. “Ia para a fábrica e o Midani barrava. Eu estava lá dentro, conseguia saber das coisas… o disco foi três vezes pra fábrica”. Até que resolveram lançar as primeiras faixas em compactos, mas sem divulgação. Procurado, André Midani, hoje na TV com uma adaptação em vídeo para seu livro Do Vinil ao Download, se limitou a responder: “Amo muito Hyldon e tenho o maior respeito por sua arte”.

A gravadora não esperava a espontaneidade dos programadores musicais das rádios. O primeiro single, homônimo ao disco mas com o complemento “Casinha de Sapê” entre parênteses, começou a tocar nas rádios mais populares, com destaque. Incluindo o programa do Big Boy, na rádio Mundial do Rio de Janeiro, que ditava as regras da cultura pop nos anos 1970. O segundo single, “As Dores do Mundo”, também começou a tocar. Mesmo com dois singles de sucesso. Hyldon ainda sentia uma resistência para o lançamento do álbum completo.

“Finalmente saiu o disco, mas fiquei revoltado. Fui boicotado, não tinha foto de divulgação, não tinha nada… peguei o primeiro pagamento e fui a Nova York. Tinha feitos vários programas, Globo de OuroFantástico, estava no topo das paradas… mas fui embora. Eu era romântico, sonhador, queria ver se lá com meus ídolos era assim também”, conta Hyldon. Nessa temporada, ele viu de perto Marvin Gaye (com o show do disco What’s Goin’ On), Temptations e também levou cópias do seu álbum, que chegou a tocar em algumas boates nova-iorquinas.

“Com esse negócio de regravar o Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda, eu percebi de uma vez por todas o motivo desse disco ser diferente. Ele tem um lirismo, um romantismo, uma pureza, que eu perdi. Entrei em guerra com multinacional, gravadora e não me preparei pra isso. Eu só queria saber da arte e sofri”, pondera o cantor, que segue: “Não regravo pra me repetir, mas pra ter um resgate meu e ter uma propriedade sobre as minhas músicas, que hoje são da Universal. Hoje eu sou empregado deles. Quero pegar agora e colocar na internet sem pedir autorização, tô muito feliz. Revisitando o trabalho com outra cabeça mas tentando beber na mesma fonte”.

Quem sentiu na pele a força de uma composição desse disco foi a banda, então iniciante, Jota Quest. Em 1994, Fernando Furtado, empresário do Skank e padrinho do grupo, chegou com uma fita cassete com “As Dores do Mundo” e pediu para o Jota Quest regravar. “A princípio relutamos um pouco, afinal não era a ‘Casinha de Sapê’. Mas quando vimos que ele havia gravado a música na fita inteira, dos dois lados, achamos melhor obedecer (risos)”, conta Rogério Flausino, vocalista do Jota Quest.

“Quando começamos a trabalhar na música descobrimos suas belezas. A harmonia, que no início é melancólica, no refrão se abre pra alegria de acordes maiores, embalando os versos de ‘eu vou esquecer de tudo/das dores do mundo’”, completa Flausino. “As Dores do Mundo” foi a primeira música de trabalho do primeiro disco do grupo, de 1996, catapultou os iniciantes de Minas Gerais para todo o Brasil e colocou Hyldon novamente, como compositor, no topo das paradas.

O disco Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda traz um Hyldon puro e ao mesmo tempo já experiente. A sonoridade mistura o garoto que cresceu na Bahia com o músico e produtor do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo que em algumas músicas, como “Sombra de uma Árvore” e a faixa-título, emulam um cenário bucólico, com uma casinha isolada do mundo, outras como “Vamos Passear de Bicicleta?” e “As Dores do Mundo” já mostram o garoto romântico e inserido no contexto de uma cidade grande. Essas músicas alcançam as mais variadas classes sociais e não têm sequer um gênero definido – a soul music é a que mais se aproxima, mas tem até rock rural. Talvez esse seja o segredo, quase que impossível de ser repetido como se fosse uma fórmula, para que Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda continue sendo lembrado e regravado 40 anos depois do seu lançamento.

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