Afinal, o que é essa tal de MPB? (O Estadão)

 

Toda definição é limitadora. Toda unanimidade é burra. Pois bem, a surradíssima expressão “música popular brasileira” há tempos não define nada e agrada a poucos. Minha missão aqui é comentar a tal da MPB mais ou menos como tenho feito no rádio. E vou começar essa história discutindo o conceito que dá nome a esse espaço.

O que há tempos se convenciona chamar de música popular brasileira é qualquer coisa híbrida desde a sua origem. Nas teclas sincopadas de Ernesto Nazareth nos salões de baile do Brasil do Império já se misturavam a música europeia com o batuque das ruas do Rio de Janeiro. Batuque que veio da África e que nas rodas de folia que se armavam em torno das tias baianas deu no nosso amado samba. Que me perdoe o professor Arnaldo Contier, colega de conselho da Enciclopédia Virtual de Música Popular Brasileira e que odeia o verbo “misturar” quando se trata de gêneros e estilos. Mas, o pior é que todo mundo usa e todo mundo mistura mesmo nesse País. Samba com jazz, bossa com balanço, choro com canção. E por algum tempo, cada coisa dessas virava um estilo, ganhava uma definição. Nas primeiras bolachas de vinil vinha sempre uma coisinha escrita: “valsa maxixe”, “choro sincopado” e assim por diante. Talvez uma herança das definições da música erudita.

Nos anos 60, a sigla MPB ganhou conotação política e muitos artistas que depois “viraram a casaca” saíram às ruas em 67 pra protestar contra o uso da guitarra elétrica. Nara Leão e Caetano Veloso assistiram da janela do Hotel Danúbio. Ela espertamente, consciente da bobagem e até com um certo medo da posição “integralista” dos colegas. Isso eu não vi, porque nasci em 65, juntinho com a Jovem Guarda, mesmo mês e ano, mas eu li, meninos, eu li, na excelente biografia de Nara Leão, de Sergio Cabral. Nara, uma mulher convicta, um capítulo à parte, musa vanguardista que juntou Zé Kéti com João do Vale, o morro carioca com o sertão nordestino – um saboroso assunto para outro dia.

Elis Regina e Gilberto Gil estavam lá, nas ruas, primeira fila. Logo ele, um fã ardoroso de Jimmy Hendrix que foi uma grande inspiração pro seu violão e que depois se juntou aos Mutantes pra arrebentar nos festivais da canção. E Elis fez em 70, no ótimo LP Elis Em Pleno Verão, uma tentativa de tropicalizar-se com produção de Nelson Motta cantando Marcos Valle, Caetano, Gil, com arranjos quase doidos. “Tropicalistas somos todos nós”, como diz Rita Ribeiro.

E o que falar do rock comportadinho que fazia tanto sucesso naquela época que gerou protestos contra a alienação da juventude? A Jovem Guarda inspira gerações de compositores e é pura música pop brasileira. Clássicos de Roberto e Erasmo tocam até hoje no rádio na voz de Adriana Calcanhotto, cantora e compositora das mais geniais e que no primeiro LP era totalmente tropicalista, antropofágica, um mix total. O guitarrista Fernando Catatau, desejado por 10 entre 10 cantoras da novíssima geração, é um admirador confesso do romantismo daquela turma. E mais, do brega nordestino que ouvia quando menino nas ruas de Fortaleza e nas rádios mais populares. Viva Odair José!

Nos anos 70, Rita Lee e Gilberto Gil fizeram da Refestança uma boa maneira de questionar a tal da música popular de sua época e por ali ainda tivemos o meteórico e genial Secos e Molhados. Nos 80, veio o rock brasileiro com Legião Urbana, Titãs, Paralamas e uma nova separação, quem era do rock não fazia MPB… Nos 90 a mistura virou lugar comum e artistas como Lenine, Zélia Duncan, Itamar Assumpção e Cássia Eller encontraram seu lugar ao sol fazendo pop, rock, maracatu, folk, ciranda, samba e muita canção.

Chegamos aqui num outro conceito que é a essência da nossa música popular, o encontro entre letra e melodia que em nosso País assume a excelência máxima. Assunto para um próximo sábado com ouvidos atentos ao mestre Luiz Tatit que sabe tudo do encontro entre ritmo e poesia (opa, rap também é MPB?).

Agora no final do ano pudemos ler várias análises sobre o que é a nova música brasileira e o que aconteceu de bom e ruim nos últimos dez anos. É opinião comum que a revolução tecnológica, a facilidade de acesso aos meios de produção e de distribuição virtual da música entraram em contraste com a cultura do vintage, do soul, do R&B. Eu vejo a liberdade comendo solta e fazendo um ótimo serviço para a nossa produção cultural. Nunca se produziu tanto e fazia tempo que não aparecia tanta gente com qualidade.

Hoje já não se discute o que é MPB, se faz música brasileira e pronto. Tim Maia, Cassiano e Hyldon faziam soul music, e daí? Música pop feita aqui e de dar inveja a muito negão norte-americano descendente direto de Robert Johnson e Marvin Gaye. E quando Fernanda Porto sampleia agogô e tamborim pra fazer samba e coloca a moçada na pista com Só Tinha de Ser com Você? Que delícia que é ouvir o versos de Aloysio de Oliveira, a melodia de Tom Jobim, cantada aos berros na maior felicidade. Vá lá que a maioria feliz não sabe que está consumindo um clássico, mas talvez isso na verdade não tenha mesmo tanta importância. Biscoito fino para as massas, por favor. Maria Bethânia fez com que intelectuais consumissem Zezé di Camargo e Luciano fazendo o caminho inverso e eu já ouvi gente dizer que a elite econômica e cultural do Brasil não ouve música brasileira, só finge, porque é bacana!

No fim das contas, é como me disse Zeca Baleiro no livro Vozes do Brasil (Ed.DBA): “O que eu quero mesmo é ser um compositor popular”. Claro! E quem há de dizer que não é uma maravilha ouvir sua música no rádio do carro, ou assim de surpresa com alguém assoviando na rua? E a gente que só ouve e que faz das canções a trilha sonora da nossa vida? Faz diferença se a música é muito sofisticada ou tem só dois ou três acordes?

Tudo isso e alguma coisa mais é a nossa riquíssima música popular brasileira e é disso que vou falar por aqui. Desta feita, por escrito.

 

Fonte: O Estadão/Cultura