“Estácio Vivo” demonstra que obra criada pelo artista e intérprete de blues, samba, rock, soul e jazz sobrevive de forma indelével ao tempo.
Pés se mexem e mãos batucam na mesa – ou seja lá em que lugar você estiver – assim que o primeiro acorde de “Estácio Vivo” entra em nossos ouvidos. Soa tão bem que queremos ouvir zilhões de vezes. Fibrila suingue, black Rio total. Música boa sai do fone. O contrabaixo costura a síncope tocada na bateria e, numa fração de segundos, ouvimos o piano anteceder a mensagem. Luiz Melodia dá as caras: “disseram no jornal, televisão/ Que eu não gosto mais de samba, samba/ Jornal, televisão está no ar/ Mas eu sou bamba, bamba”.
Esse cara jamais irá se calar. Seu novo disco acaba com qualquer equívoco nessa linha. Está tudo ali: a voz de mel, o asfalto, o morro, o blues, o reggae, o jazz, o funk, a soul music, o rock’n roll. A melodia de Luiz já nos seduz logo na abertura, com o “O Meu Sangue Não Nega”, e se estende por “Onde o Sol Bate e Se Firma”, a segunda faixa do show gravado no Teatro Rival, casa conhecida na cena musical carioca, situada no Centro da cidade. Há um efeito de guitarra wah-wah capaz de abrir e fechar a nossa boca, numa tentativa infame de imitar o hipnotizante som consagrado pelo mestre Jimi Hendrix, nos anos 1960.
Nesta apresentação, Melodia estava acompanhado por uma banda coesa: Renato Piau (violão, guitarra e vocais), Jorjão Barreto (teclados) – ambos também arranjadores –, Élcio Cafro (bateria) e Aluízio Veras (contrabaixo). O repertório se mostra bastante convidativo para passearmos pela obra do brilhante compositor, filho do Morro de São Carlos, no Estácio. Um dos melhores momentos é a balada bluesy “Pérola Negra” e o rock blueseado (mas acústico) “Farrapo Humano”, que debutaram há 50 anos no retumbante elepê de estreia. Só tem coisa boa em “Estácio Vivo”: “Que Loucura”, “Congênito”, etc.
Para quem estava no Rival naquele 17 de novembro de 1998, foi uma noite maravilhosa, como o próprio Melodia queria que fosse. A Sony Music fez um favor à música brasileira ao lançar “Estácio Vivo”, pois tem relevância documental. Nas 16 músicas da obra, evidencia-se todo o talento de Luiz Carlos dos Santos, carioca nascido em janeiro de 1951 e falecido de forma prematura em agosto de 2017, aos 66 anos, após não resistir às sessões de quimioterapia que se constituíam parte do tratamento contra o câncer na medula óssea.
Maior bluesman brasileiro, Melodia deu de ombros aos bons costumes. Sempre foi anárquico, sem saco ou paciência para os joguinhos da indústria fonográfica. Entre um disco e outro, lixando-se para os engravatados do disco, havia hiatos um tanto longos. O jazzista Nat King Cole lhe fazia a cabeça. Na vitrola, rolava também o blues de Taj Mahal e, sobretudo, a contracultura personificada pelo tropicalismo de Caetano e Gil. Esse caldeirão musical enlouqueceu dois nomes centrais para a carreira de Luiz Melodia: Waly Salomão e Torquato Neto. Ambos foram arrastados até o morro pela inquietude de Hélio Oiticica.
Como se apaixonaram pelo que tinham encontrado, Waly e Torquato apresentaram Melodia para Caetano Veloso e Gilberto Gil. Pouco tempo depois, ele já estava na casa de Gal Costa, então musa maior do desbunde. Foi lá que todos se encantaram ao escutar “Pérola Negra”, que tivera dedo de Waly Salomão. Sua intervenção foi crucial, de fato, e se provou relevante para a música, pois sugeriu a troca do tratamento “my black, meu negro” por “Pérola Negra”. Assim era chamada uma travesti de nome Adílson. Revolucionário é pouco.
Rimbaud do morro
Melodia extraiu material do Estácio, berço do samba, cuja estrutura harmônica foi estabelecida pelos bambas locais (lembra da música “O Meu Sangue Não Nega”?), como Ismael Silva, Bide e Brancura. O pai de Melodia, Osvaldo Melodia, tocava no bairro. Da figura paterna, portanto, recebeu importantes influências. Mas não lhe bastava só o batuque: também gostava de blues e tropicalismo, especialmente do violão cheio de personalidade tocado por Jards Macalé, quem mais lhe impressionou no movimento contracultural.
Conhecido como Rimbaud do morro, Melodia estreou aos 15 anos, cantando em grupos de baile. Já demonstrava habilidade para criar sambas temperados e rocks mergulhados na lisergia. “Pérola Negra” possui faixas arranjadas por Pedrinho Albuquerque. Quem toca guitarra em algumas gravações é Hyldon, que viria a compor, anos depois, o hit “Na Rua, Na Chuva e Na Fazenda”. A bateria foi comandada pelo lendário Robertinho Silva. Timaço de músicos. Melodia era sambista, mas também soulman, roqueiro e, sobretudo, blueseiro.
Agora com certa fama entre os intelectuais e hippies de Ipanema, Luiz Melodia estreou como compositor de Gal Costa, entorpecida pela força da poesia melodiana. E lançou-o no clássico “Fa-tal” (1971), antológico show gravado no Teatro Thereza Rachel, templo da contracultura brasileira. O belíssimo blues de Melodia está no lado A do segundo disco. Dali a dois anos, ele faria o próprio elepê e, em 1976, viria com “Maravilhas Contemporâneas”. Algumas preciosidades integram o repertório desse trabalho, como “Congênito”, crítica à sociedade de consumo. A música foi gravada por Vanusa, num primeiro momento.
Na 3° disco, “Mico de Circo” (1978), o artista sensualizou com “Onde o Sol Bate e Se Firma”. Adentrou os anos 1980 com “Nós”, obra na qual trazia o funk “Mistério da Raça”, parceria com Ricardo Augusto, cujos versos de alta energia positiva se tornaram um símbolo na discografia melodiana. “Luz é vida/ Pulsação”, escreveu o artista, que estudou até a sexta série. Duas canções desse período estão em “Estácio Vivo”: o samba “O Sangue Não Nega” e o blues “Que Loucura”, composição de Sérgio Sampaio, lançada em “Tem que Acontecer” (1976), seu segundo disco. Ambas estão nos discos “Felino” (1983) e “Claro” (1987).
Melodia chega aos anos 1990 com o hit “Cara a cara”, parceria dele com o violonista Renato Piau. Foi lançado no CD “Pintando o Sete” (1991). Essa década foi produtiva: Melodia registrou mais três álbuns. O novo milênio começou com “Retrato do Artista Enquanto Coisa” (2001). “Estácio Vivo” é lançado numa boa hora. Gol de placa da Sony Music. Luiz Melodia é essencial, ainda mais no dia em que a sociedade reflete sobre a Consciência Negra.
Fonte: Diário da Manhã – Música