Em matéria intitulada “Ostracismo, Nunca Mais” publicada pelo jornal O Globo em edição de 1990, o repórter Paulo Ricardo Moreira traz um entrevista com Hyldon, Cassiano e Paulo Diniz sobre suas trajetórias; hoje podemos dizer que aquele era um momento de entressafra na carreira dos artistas. A certa altura da reportagem, Hyldon afirma: “não estou morto não. Vivo para a música 24 horas por dia”. Mais de 30 anos depois Hyldon continua vivendo para a música: produziu como nunca nas últimas duas décadas; renovou parcerias e comemora em 2021 seus 70 anos.
Foto: Analice Paron / Agência O Globo
No entanto, Paiva ressalta que:
Embora os cantores da Soul Music atingissem significativos índices de venda e tenham exercido influências significativas na produção musical do país, suas posições dentro do campo da música popular revela certo desprestígio do gênero, muitas vezes visto como uma manifestação musical de negros politicamente alienados (PAIVA, 2015, pp.5-6).
Esses artistas, em um primeiro momento, não foram incluídos sob a sigla MPB, sendo classificados como outsiders dentro do campo da música popular. De acordo com o especialista no assunto Carlos Eduardo Amaral de Paiva, essas posições subalternizadas dentro do campo da música estiveram relacionadas “às suas origens sociais, étnicas e de classe que, em última instância, se apresentam como fator motivador das opções e práticas musicais desses artistas” (PAIVA, 2015, p.6).
Fato é que o gênero Soul Music atingiu sucesso de público e de vendas através desses artistas, que representaram uma fatia do público brasileiro até então ausente das preocupações do mercado fonográfico. Ainda segundo Carlos Eduardo, embora a Soul Music não tenha sido o tipo de canção que embalou o processo de desmantelamento da ditadura, pode ser considerada como parte da formulação desta cultura antiautoritária e da ampliação da ideia de democracia no país (PAIVA, 2015, p.152).
Em artigo sobre a Soul Music dos anos de 1970, Paulina L. Alberto também ressalta a importância deste gênero na música brasileira e no cenário social do Rio de Janeiro naquele momento (ALBERTO, 2015, p.54). Segundo a pesquisadora, o estilo era um fenômeno e, além da música, trazia estilos e vestuário, separados, porém, da carga política que o Soul havia adquirido nos Estados Unidos (ALBERTO, 2015, p.71).
Nos últimos anos, os estudos sobre a Soul Music brasileira vêm crescendo, ao mesmo tempo em que se verifica a renovação do público desses artistas, razão pela qual suas trajetórias também seguem sendo rememoradas e repensadas através de pesquisas acadêmicas, matérias jornalísticas e livros.
Hyldon é um desses artistas constantemente convocado para recontar suas lembranças da efervescência cultural na década de 1970. Mas como o baiano de Salvador iniciou sua trajetória na música? Sobre suas influências, ele destaca o ecletismo e lembra que aos 6 meses foi morar com a avó em Senhor do Bonfim (BA), enquanto sua mãe foi para o Rio de Janeiro acompanhada por seu padrasto. Da cultura que se lembra de pequeno, constam “as festas típicas, desafios, os cantadores, muitas músicas de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Frevo, Folia de Reis”.
Com 7 anos o cantor foi morar no Rio de Janeiro, mesma idade em que aprendeu tocar violão: “meu tio tocava violão, tinha um trio, minha mãe cantava muito bem, ela era fã da Angela Maria, Dalva de Oliveira, a gente ouvia muita música, muito rádio”. Percorrendo suas influências, também destaca que “entrou o rock and roll e eu fiquei maluco com aquilo, porque aquelas músicas eram todas lentas e de repente… o primeiro cara que eu vi foi o Little Richard; e os filmes do Elvis Presley”.
Foto: Reprodução/O Globo
Hyldon gostava de assistir o programa “Hoje é Dia de Rock”, de Jair de Taumaturgo, na TV Rio, até que na adolescência começou a ouvir Stevie Wonder: “eu já estava com uns 16, 17 anos. Aí eu comecei a ouvir tudo da Motown, Aretha Franklin”. Era o começo de uma longa história marcada pela Soul Music.
Uma das influências decisivas do cantor foi seu primo Pedrinho Souza, que em 1964 formou com amigos o conjunto The Fevers, cuja estreia artística ocorreu justamente no programa “Hoje é Dia de Rock”. O grupo foi logo associado à Jovem Guarda e acompanhou vários artistas desse movimento em gravações, como Roberto e Erasmo Carlos, Eduardo Araújo, Golden Boys, entre outros. Pedrinho deu uma guitarra para Hyldon e sugeriu que ele montasse um grupo. Foi assim que surgiram Os Abelhas, fazendo bailes pelo Rio e cidades próximas como Cabo Frio e Niterói.
Mesmo após o retorno de sua mãe à Bahia, Hyldon, ainda menor de idade, permaneceu no Rio de Janeiro, tocando em programas como o do Paulo Bob e no Bolinha. Estudante do colégio Nilo Peçanha, o cantor foi morar com o primo, com quem passou a trabalhar na produção de discos e como uma espécie de roadie de Pedrinho Souza. Um dia, por conta da ausência de um dos integrantes do The Fevers, Hyldon fez a substituição, tornando-se, em suas palavras, uma espécie de reserva do grupo.
Depois de dois anos nesse ritmo eu enchi o saco de tocar aquilo ali, o conjunto, o negócio do baile, de ter que tocar igual, ficar repetindo, sabe? Então eu dei uma virada na minha vida. Eu ganhei um livro do maestro Ian Guest, chamado Cartas Para Um Jovem Poeta [de Rainer Maria Rilke] e outro chamado As Dores do Mundo, de Schopenhauer; são dois livros que me influenciaram muito (HYLDON, 2021).
Hyldon foi morar em uma pensão com o dinheiro que ganhou trabalhando em gravações e como compositor. Em 1968 Roberto Livi havia gravado a primeira composição do artista, a canção “Eu Me Enganei“, que saiu não apenas no Long Play de Roberto, como também no disco “As 14 Mais – Vol. XXII“, onde a CBS lançava as músicas destaque da gravadora. Neste volume XXII, estavam interpretes como Roberto Carlos na primeira faixa, Jerry Adriani, Wanderléa, Renato e seus Blue Caps e Leno, todos relacionados à Jovem Guarda. Esses discos eram sucesso de vendas. Com os direitos de compositor Hyldon comprou um fusca. Trabalhando com o primo na CBS também teve canções gravadas por vários artistas ligados ao iê-iê-iê; a lista é grande e conta com nomes como Wanderley Cardoso, Elizabeth, Adriana, Sylvinha Araújo e Jerry Adriani.
Mas foi nesse período de mudanças que Hyldon conheceu Cassiano e Tim Maia: novos amigos e parceiros de trabalho. Ao lado de Tim, compôs “I Don’t Know What To do With Myself“, gravada no álbum “Tim Maia”, lançado pela Polydor em 1971. O baiano radicado no Rio de Janeiro também se tornou um dos moradores do ilustre Solar da Fossa, onde também residiram Caetano Veloso, Claudio Marzo, Betty Faria, Adelzon Alves, Darlene Glória e uma imensa lista de famosos (VAZ, 2011). Foi lá que Hyldon compôs “As Dores do Mundo“. Figurou ainda nos álbuns de Tony Tornado com a canção “O Reporte Informou” e no disco do trio vocal Jurema, Jussara e Robson, que formavam o Trio Ternura, com a canção “Vou Morar no Teu Sorriso“.
O conjunto dessas gravações mostra uma mudança de direcionamento nas composições, que antes eram mais próximas da Jovem Guarda e agora se tornavam parte do que viria a ser chamado de Soul Music. Hyldon seguiu sendo gravado por vários artistas e tocando em shows com vários deles: acompanhou Tim Maia, Eliana Pittman, Tony Tornado e Wanderléa que, na época, fazia uma transição da Jovem Guarda para outros estilos, com o disco “Maravilhosa”, de 1972. A cantora aparece na capa com um black power e grava canções de Gilberto Gil, Jorge Mautner, Assis Valente, Roberto Menescal e duas canções de Hyldon.
Sobre os caminhos abertos naquela época, o cantor lembra: “Ou você tinha um empresário, ou era um puta cantor com um vozeirão, ou fazia um tipo galã, porque os empresários gostavam desses tipos de artistas. E não era a minha praia. A minha praia era música mesmo. Aí eu falei: vou produzir”. Hyldon foi produzir outros artistas, enquanto tentava a oportunidade de gravar seu disco. O artista disse para Jairo Pires, um dos diretores da gravadora que queria gravar seu álbum autoral, o diretor então respondeu “porque ainda não gravou?”. Gravava nos momentos em que era possível, quando havia espaço no estúdio. Com uma lista de vinte canções, tinha um álbum pronto. André Midani ainda tentou que o cantor fizesse metade do disco de versões, mas Hyldon não aceitou.
De acordo com as lembranças de Hyldon, naquele momento, suas produções estavam vendendo cada vez mais e resolveram liberar o lançamento de um compacto; logo a canção “Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda” começou a tocar nas rádios. O Long Paly saiu em 1975, e conta com participações de Ivan Conti, Mamão na bateria, Alex Malheirros no baixo e Zé Roberto nos teclados, além de uma série de músicos renomados: um disco com uma produção bem elaborada, com metais, flautas e cordas, que só alguém que conhecia muito bem os mecanismos da gravadora poderia ter se utilizado.
Outra canção que fez sucesso nacional foi “As Dores do Mundo“, que em 1996 foi regravada pelo grupo mineiro Jota Quest. O disco foi relançado algumas vezes e teve um lançamento em vinil pela Polysom em 2016, mais de quatro décadas depois da produção original, evidenciando a atualidade do trabalho realizado.
Depois do sucesso do disco de estreia, o cantor passou uma temporada nos EUA. Seu segundo disco “Deus, a Natureza e a Música” também foi lançado pela Polydor, mas, por divergências com a gravadora, foi seu último trabalho por lá. No ano seguinte, 1977, Hyldon gravou o disco “Nossa História de Amor” pela CBS, empresa para qual Jairo Pires o havia transferido. São marcantes nas memórias de Hyldon as desavenças dentro das gravadoras em função de imposições e boicotes.
Na década de 1980 lançou três discos: “Coração Urbano“ (1986), “Sabor de Amor” (1981) e “Hyldon/Pétalas Vermelhas” (1989), os dois últimos estão sendo lançados nas plataformas digitais por esforço do cantor, em sintonia com a modernização do mercado da música. Na década de 1990 o artista lançou apenas um disco, mas nos últimos anos foram oito, além de ter gravado clipes como o da canção Boletos ao lado dos jovens do Trio Frito.
Em tempos recentes, o cantor e compositor também teve entre seus parceiros Arnaldo Antunes, Céu, Zeca Baleiro, Mano Brown e Dexter. No momento, trabalha em uma música em parceria com Fagner. Essa renovação o levou a tocar nos palcos do Rock in Rio, tanto na versão brasileira quanto na versão realizada em Lisboa. Seu disco “As Coisas Simples da Vida” foi considerado um dos 25 melhores discos do ano pela revista Rolling Stone. Hyldon ainda deu aula durante 14 anos na comunidade do Terreirão, um trabalho voluntário realizado pela ONG CAT, sendo quatro anos para os adultos e dez para crianças.
Foto: Reprodução da capa do álbum
É com orgulho de suas canções que Hyldon nos conta histórias de sua vida de multiartista. Durante a entrevista relatou, por exemplo, um show na cidade de Currais Novos, no Rio Grande do Norte – que tinha também Tunai e Dalton como atração -, no qual tocou “As Dores do Mundo“, “Na Sombra de uma Árvore” e encerrou com “Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda“. Em suas lembranças, o lugar lotado, com um palco enorme, por vezes, via o público dispersar entre as canções de voz e violão. Ao cantar a última música, contudo, a comoção o deixou emocionado: “Eu estava saindo do palco, aí o Padre falou, “eu sou seu fã, ouvi seus discos todos! Aqui na cidade, cinco minutos antes da Ave Maria, eu ponho Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda””.
Em 2020, para lançar o disco “SoulSambaRock”, com a pandemia Covid-19 já em curso, o cantor fez 150 lives que agora estão sendo transformadas em Podcast. Casado com a artista plástica Zoé Medina, pai de duas filhas, Halina e Yasmim, e zagueiro do Polytheama – time organizado por Chico Buarque – Hyldon chega aos seus 70 anos em plena atividade, renovando seu público e valorizando sua trajetória como representante de sucesso da Soul Music brasileira. Como diz a canção: “O abraço fraterno do amigo, de um irmão/ Desenhar no papel um barquinho, um avião/ Mergulhar de cabeça sem medo, numa nova paixão/ Viajar num livro bom, num instrumento musical/ Comer frutas no quintal, dormir em paz”… são As Coisas Simples da Vida.
Referências
- ALBERTO, Paulina L. Quando o Rio Era Black: Soul Music no Brasil dos Anos 70. História: Questões & Debates, Curitiba, volume 63, n.2, p. 41-89, jul./dez. 2015. UFPR
- HYLDON. Entrevista concedida ao pesquisador Daniel Lopes Saraiva. Por Telefone. 26 de Março de 2021.
- MOREIRA, Paulo Ricardo. Ostracismo, Nunca Mais. O Globo, 22 de Dez 1990.
- PAIVA, Carlos Eduardo Amaral de. Black Pau: A Soul Music no Brasil nos anos 1970. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, 2015.
- VAZ, Toninho. Solar da Fossa. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011.Fonte: IMMuB