Disco ‘SoulSambaRock‘, ao contrário do que o nome pode sugerir, tem um samba rock e, no mais, um longo passeio pelas suas influências musicais.
Se todo artista é uma ideia, Hyldon é a balada soul dos anos 70. Ela, a ideia, é real e tem como origem o ano de 1975, quando ele veio com um álbum estupendo pelo selo Polydor, puxado pelo single que já era sucesso, Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda (ou Casinha de Sapê). Uma ideia reforçada por um disco inteiro que tinha ainda À Sombra de Uma Árvore, Vamos Passear de Bicicleta, As Dores do Mundo e Acontecimento e que colocaria Hyldon como um dos três pés da chamada soul music brasileira, ao lado de Cassiano e Tim Maia. Mas uma ideia nunca é o todo e, como todo artista idealizado por ideias, Hyldon tem partes que não caberiam no álbum de 75 porque a ideia da gravadora não era mostrá-lo em nenhum momento distante das baladas.
Há uma discografia inteira que segue Casinha de Sapê para provar por onde andou esse homem de 69 anos, baiano de Salvador, mas crescido no interior de Senhor do Bomfim, nas franjas de Pernambuco, o que talvez o tenha aproximado mais do nordeste sertanejo do que do africano, mais da toada do que do terreiro. Hyldon tem uma bagagem pesada. Saiu da Bahia, viveu no Rio de Janeiro a partir dos anos 1970 e viajou o mundo se apaixonando pelas cidades. O álbum que lança agora, exatamente no momento em que não se pode estar em nenhum lugar que não seja a própria casa, parece colocá-lo em todos os cantos ao mesmo tempo e comprova o quanto as ideias que libertam podem também ser traiçoeiras.
Ele começa a falar do álbum novo pelo passado. Mais precisamente, pelo disco que lançou em 2016, As Coisas Simples da Vida. “Eu fiz uma música sobre o trem que deveria pegar para ir a Bangu visitar Hermeto Pascoal, Um Trem para Bangu. Comecei a fazer a música, mas faltava terminar, e eu só conseguiria se pegasse esse trem. Fiz isso com um amigo meu e voltei com aquela vivência do trem. Só assim consegui finalizar a canção.”
O material inédito que mostra agora trabalha com a ideia de romper uma linearidade, aquilo que poderia ser esperado para a próxima faixa, o tempo todo. A abertura é com República das Bananas, um surpreendente acento caribenho, com sopros, timbales e outros cubanismos pedindo proteção ao “pobre favelado da América Latina”. Então, vem um corte de clima e começa A Lenda do Clube dos 27, um R&B com uma crônica narrada por um jovem prestes a fazer 27 anos de vida trágica, inspirada na série Sintonia, de KondZill, em Irmandade, estrelada por Seu Jorge, e no filme Cidade de Deus (que por sinal usava Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda na trilha)
Um passo à frente e vem um samba-rock carioca, com mais aproximação da gafieira, chamado Soul Samba Rock, Sou, falando de Jorge Benjor, Bola Sete, Ed Lincoln e de toda uma tradição que, por alguma razão, foi criada no Rio, mas só cultivada em São Paulo. “Ninguém dança samba-rock aqui no Rio”, diz Hyldon, por telefone, de sua casa. É curioso que ele, Jorge Ben, Erasmo em sua fase pós-Roberto e tantos nomes gravaram sambas-rock que seriam utilizados pelo circuito dos bailes de nostalgia da periferia de São Paulo. Jorge Ben nem gosta de falar no assunto. “Isso tudo cresceu, virou um movimento e música e dança. Existe em Porto Alegre, Belo Horizonte e muito em Belém, onde fui chamado para participar de um festival, mas não tem no Rio.” No Rio, ele diz, seria a gafieira. E um mundo é pequeno demais para existir uma gafieira ao lado de um baile de samba-rock. “Não é mesma coisa. O samba-rock tem metais mais curtos, uma levada diferente.”
Um Luau pra você vai para outro lugar. É um rap, foi feita com Rappin’ Hood e tem a participação do próprio e de DJ Camarão na gravação. Eis outro território que respeita o Hyldon no pós-anos 1970. Antes de haver programas para gravação de faixas caseiras, antes mesmo de haver computadores, os artistas da geração de Rappin’ Hood usavam bases de seus discos como fundos para suas criações.
Mais adiante, Vida que Segue vira tudo de novo e se torna o que mais se parece uma de suas baladas setentonas não fosse a guitarra classuda de Roberto Lubambo, que viu Hyldon em um show, se emocionou com suas músicas e se dispôs a colocar guitarra no que ele quisesse, direto de seu estúdio em New Jersey.
Vida que Segue tem a melhor voz e a melhor instrumentação do álbum, e foi feita sob uma condição de pressão que vale ser contada. Gal Costa queria gravar algo de Hyldon no álbum A Pele do Futuro, mas lhe deu exatos dois dias para compor. Em um fim de semana, sozinho em casa, mas apoiado pela mulher que saiu para que o marido vencesse o desafio, Hyldon resolveu “entrar na mente” de Gal. “Eu li as entrevistas, assisti a links com ela falando, cantando. Queria compor para alguém sabendo exatamente como ela pensava.” Hyldon entregou a música na segunda. Assim que Gal colocou a voz, seu produtor, Marcus Preto, ligou para avisar que a canção estava linda. A versão de agora, com o próprio autor no vocal, talvez esteja até melhor.
Outra canção é Boletos, com o Trio Frito, e aqui vai um outro Hyldon. Um hard rock, pesado, bem tocado pelo Trio, com a melodia da voz dobrada com a guitarra distorcida, falando dos discos de Led Zeppelin, Mutantes e Elis levados pelo amor que foi embora. É pueril a forma como ele compõe, falando dos boletos que lhe chegaram à mão e que, por pior que seja, “você vai ter de pagar um dia”.
Outro rock, ou melhor, um blues rock, a faixa Zondag , “domingo” em holandês, levou Hyldon duas vezes a Amsterdã. É a última música do disco, mas a primeira que começou a criar. “Eu estava querendo comprar um violão de aço e achei pela internet um Fender azul em Amsterdã, numa loja do subúrbio.” Hyldon colocou na cabeça que devia ir buscar seu violão azul e contou, mais uma vez, com o apoio da mulher, que é artista plástica. Fãs de Van Gogh e Rembrandt, embarcaram, foram até a loja e compraram o instrumento. O blues acabou se tornando uma homenagem à cidade, mas só ficou pronta depois da segunda vez em que Hyldon e sua mulher voltaram à Holanda, quando aproveitaram e fizeram um clipe com a fotógrafa Luciana Sposito.
Isso tudo parece ser algo de um mundo que não existe mais. Cidades incríveis, passeios pelas calçadas, bailes de samba-rock e gafieiras, ensaios com banda de rock and roll. Hyldon diz que não sente ainda falta de shows e que está pronto para mostrar suas músicas em lives. O disco foi quase todo gravado sem contato entre os músicos, com cada um em seu home studio. Mas Hyldon é um otimista. “Estou só me preparando para quando tudo isso acabar.”
Fonte: Estadão – Cultura