Repertório de ‘As Coisas Simples da Vida’ será apresentado ao público paulistano na noite desta sexta-feira (5). Leia entrevista com o ícone da soul music à brasileira.
Em uma conversa descontraída realizada por telefone, do Rio de Janeiro, onde mora desde o final dos anos 1960, o cantor e compositor baiano Hyldon falou à reportagem de CULTURA! Brasileiros sobre os bastidores de As Coisas Simples da Vida, seu novo álbum, lançado em 2017 pela gravadora Deck Disc, e que terá o repertório apresentado ao público paulistano na noite da próxima sexta-feira (5), no teatro do Sesc Pompeia (saiba mais).
Aos 66 anos de idade, quase 50 de carreira, bom de papo, Hyldon também relembrou episódios de uma carreira artística ligada à memória afetiva de milhões de brasileiros desde 1975, quando ele lançou Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda…, seu primeiro trabalho autoral, álbum de grande sucesso.
Afeito à poesia das coisas singelas, como sugere o título do novo trabalho, sem abrir mão da força rítmica que o consagrou, Hyldon presenteia os fãs com uma seleção de dez novas composições que dão continuidade ao repertório de qualidade expresso em trabalhos como seu clássico álbum de estreia, Deus, a Natureza e a Música (1976), Nossa História de Amor (1977) e Sabor de Amor (1981). Sobre este último, relembra, na entrevista a seguir, o que considera um golpe sujo da gravadora Continental.
Minucioso com suas composições e arranjos, Hyldon também enaltece o trabalho de seus músicos e revela que contou com o “auxílio luxuosíssimo” de Chico Buarque para lapidar as letras de As Coisas Simples da Vida.
Nos parágrafos a seguir, divididos em blocos temáticos, os melhores momentos de quase duas horas de conversa prazerosa com esse artista que, ao lado dos amigos Cassiano e Tim Maia, definiu, no início dos anos 1970, os estatutos da soul music à brasileira.
SERTANEJO
Comecei a tocar tambor nas aulas de música do jardim da infância. No ginásio, em Niterói, ensinava a molecadinha, porque eu tinha grande noção de ritmo. Fiquei em Salvador até os 7 anos, quando minha mãe (Hildonete, daí o nome do músico) se estabilizou no Rio e mandou me buscar, mas sempre mantive a cultura do interior no que faço. Essa coisa sertaneja, da Banda de Pífanos de Caruaru, do Luiz Gonzaga, das músicas de festas, do bumba meu boi, do reinado, do congado, do frevo, das festas de São João, dos músicos de feira. Na Sombra de Uma Árvore, por exemplo, é uma espécie de baião com toada. Minha música sempre vai para esses lugares da minha infância.
CARIOCA
Com 13 anos, montei uma bandinha de rock chamada Os Abelhas. Quando cheguei aos 16, minha família voltou para a Bahia e fiquei na casa do meu primo, Pedrinho, que era guitarrista do The Fevers. Com ele passei a frequentar as gravadoras até que um dia substituí um guitarrista que faltou em uma sessão de estúdio dos Fevers. Passei a ser o regra três dos caras. Eles trabalhavam muito. Acompanhavam Simonal, Jorge Ben, Wanderléa. Pouco depois comecei a fazer minhas composições. Ainda era menor de idade quando gravei minha primeira música (Eu me Enganei, interpretada por Roberto Livi), que chegou a entrar em uma coletânea com as 14 mais tocadas no rádio e rendeu um bom dinheiro. Em 1970, conheci o Cassiano, e pouco depois o Tim me chamou para tocar no seu segundo disco, de 1971. Até o começo dos anos 1980, gravei em quase todos os discos dele. Nesse segundo, fizemos uma primeira parceria, I Don’t Know What to Do with Myself. Esse disco foi gravado em uma mesa de quatro canais e tem coisas como Não Quero Dinheiro, que você ouve o arranjo e pensa: “Não é possível, isso foi feito em 50 canais”.
SHOW DO PÚBLICO
Fiz vários shows para comemorar os 40 anos de Na Rua, Na Chuva, na Fazenda. O disco tem seis ou sete músicas que todo mundo conhece e as apresentações foram lindas. Tem um amigo meu, o escritor Toninho Vaz, que certa vez disse: ‘O melhor do seu show é o show do público’. Como sei disso, uso e abuso dos fãs e tocamos de um jeito que todo mundo pode curtir ao máximo. Os músicos têm espaço para fazer seus solos e, como minhas músicas têm muitos vocais melódicos, os meninos que tocam comigo fazem sempre uma cama para o público cantar.
LIBERDADE
As grandes gravadoras ficaram muito defasadas, não acompanham a velocidade das coisas. Já era para elas estarem vendendo pen-drives. Estou muito satisfeito com a Deckdisc. Fiz um disco pela Continental, Sabor de Amor (1981), que foi gravado com o Azymuth, e pouco depois pedi rescisão de contrato. Como pedi as fitas de volta, com raiva, apagaram toda a gravação do disco. Hoje, tecnicamente, é possível extrair o áudio a partir de um LP e melhorar a qualidade, mas isso demonstra a mentalidade das grandes gravadoras.
FAST MUSIC
Comecei a formatar o disco na minha cabeça e quis fazer algo com músicas bonitas do começo ao fim, uma coisa que parece estar acabando, né? A maioria das composições de hoje não tem introdução, não tem solo. Tudo acontece muito rápido. Antigamente, a música podia durar quatro minutos que tocava em rádio, numa boa. Hoje em dia, quando muito chega a dois. A pessoa ouve, não dá muita atenção e passa para a próxima. Ouve no carro, no pen-drive, no celular, mas nesse esquema fast music, tudo é muito rápido e descartável.
DINHEIRO X MÚSICA
O público reclama: “Pô, o Hyldon sumiu, não faz mais televisão”, mas sou superativo: produzo, faço shows, jogo futebol, estou bem de saúde. O que o público não sabe é que para uma artista chegar aos programas de TV e falar para as massas ele tem que se submeter ao jogo das gravadoras, que hoje em dia nem estão mandando tanto assim porque não vendem como antes e têm pouco dinheiro para comprar espaço na TV. Hoje, quem manda mesmo são os empresários que representam artistas de sertanejo e axé. Eles descobrem fórmulas que são repetidas até o ponto em que ninguém as suporta mais. E se o artista, como eu, nega as coisas que eles querem ele começa a ser visto como um cara problemático, irresponsável, que está cagando para o dinheiro. Gosto de dinheiro, mas amo a música muito mais. Quer me deixar contente? Me coloque num estúdio para gravar, me coloque num palco com os músicos que eu admiro.
JAY-Z E STEVIE WONDER
O Jay-Z curtiu minha página do Facebook e me desejou feliz aniversário no Twitter. O Papatinho (DJ do Cone Crew Diretoria) telefonou para me dar parabéns e comentou que tinha visto o post. Dia desses fui ouvir uma música minha com o Alex Malheiros (contrabaixista do Azymuth) no Youtube (a composição Vem Dançar o Samba) e um gringo escreveu nos comentários que a banda Jamiroquai tinha se inspirado nela para escrever uma de suas músicas (a composição Cosmic Girl, de 1996). Fui ouvir o som dos caras e o solo de sintetizador é igualzinho ao solo do Zé Roberto (o tecladista e arranjador José Roberto Bertrami, ex-líder do Azymuth, falecido em 2012). O Oscar Castro Neves (violonista e produtor falecido, nos EUA, em 2013) fez uma parceria com o Stevie Wonder (a canção The Sweetest Somebody I Know, do álbum A Time To Love) e o arranjo de violão tem uma citação da minha música Vamos Passear de Bicicleta, aliás, uma das mais pedidas pelo público. Quando o Coldplay veio para o Brasil um repórter perguntou para o vocalista (Chris Martin) o que ele conhecia de música brasileira e ele respondeu, meio sem graça, que tinha ouvido apenas a trilha do filme Cidade de Deus, que foi vendida no mundo todo e tem Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda, uma das músicas que ele mais gostava da coletânea. Por causa da trilha, um grupo finlandês (a banda Maria Gasolina) a regravou e fez muito sucesso por lá.
AUTONOMIA
Com um pouco de dedicação, qualquer um pode gravar suas próprias coisas. Hoje em dia os custos de produção são muito mais baratos que antigamente. A Polygram, onde fiz meus dois primeiros discos, por exemplo, disponibilizava às quintas-feiras um naipe de cordas para os contratados. Os músicos ficavam ali o dia todo mesmo que não tivessem nada para fazer. Bastava o artista pedir que eles colocavam em estúdio a Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com o maestro Mario Tavares regendo os arranjos.
CHICO BUARQUE, REVISOR
Trabalhei muito nas letras deste novo disco e a ajuda do Chico foi fundamental. Jogo pelada no time dele, o Polytheama, há um tempão, e o aluguei pra caramba. Chico foi meu consultor de português, virou meu revisor, copidesque e editor. Agradeci muito a ele – claro, como não agradecer um auxílio luxuosíssimo desse?! Ele é um cara muito metódico, trabalha o texto como ninguém. Escrever letras também é a arte de cortar palavras. Na maioria das vezes é melhor ser direto, procurar a síntese.
SINA DO SUINGUE
Minha ideia inicial era fazer um disco só de baladas bonitas, mas a mão começou a coçar e tive de colocar um suingue. Sempre gostei de pegar a emoção do primeiro take, mas refiz alguns registros para também caprichar na voz. Com os arranjos, sempre fui minucioso, sempre demorei para mixar. Antes mesmo de gravar, só de pensar na música ouço ela pronta na minha cabeça e não deixo faltar nada.
FAMÍLIA HYLDON
Ao vivo, o disco vai soar ainda melhor, porque vamos fazer o que está no repertório e o que mais a gente inventar na hora. A gente faz aquela basezinha para ninguém se perder e deixa o público em total liberdade. Teve um show que fiz com o Arnaldo Antunes e a gente fez aquela linha de agradecimento para então sair do palco. A gente ficou esperando os músicos voltarem e o Arnaldo comentou:“Hyldon, nunca vi isso, eles estão comemorando o show em cima do palco com o público”. É esse clima que está no disco e estará nos shows. Se eu tivesse a meu lado outras pessoas para fazer esse trabalho, o resultado jamais seria igual. A gente tem um carinho enorme um pelo outro. Temos respeito, afinidade, amizade. Somos uma família. Apesar de o País estar quebrado, queremos levar esse show a muitos lugares porque a música é como um bálsamo para a gente.
MAIS
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Fonte: PAGINA B!