Cassiano se foi agora, mas sua voz já tinha sido silenciada muito antes | Folha de São Paulo

“Ouvindo Cassiano, Há/ Os gambé não guenta.” Talvez tenha sido ouvindo esse verso “Vida Loka (Parte 2)”, de Mano Brown, que o nome de Cassiano apareceu para você pela primeira vez. Ou então em “Sou Mais Você”, quando o mesmo Brown despeja todo o seu discurso de autoajuda numa quebradinha emocionado e ao fundo se ouve a canção “Lágrimas”, do Cassiano.

Morto na última sexta, Genival Cassiano dos Santos era mais do que um cantor lembrado pelos rappers dos anos 1990. Nascido em Campina Grande, na Paraíba, mas um carioca de raiz por ter se mudado para o Rio de Janeiro nos anos 1960, formou o grupo Bossa Trio, muito inspirado em João Gilberto.

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Da bossa nova para o funk, pouco tempo se passou. Inspirados por movimentos como os Panteras Negras e o black power, entre os anos 1960 e 1970, tivemos uma ascensão dos movimentos da música brasileira preta. Soul, funk e samba começaram a influenciar bem mais músicos negros como Cassiano e seus amigos Tim Maia e Hyldon do que apenas os acordes dos violões da bossa nova da elite carioca.

banda Black Rio e os bailes black são a base da música preta brasileira, seja no rap ou no funk. São movimentos em que Cassiano teve grande participação, tanto por suas criações quanto por seu estilo –talvez por isso ele seja tão reverenciado pelos músicos da época.

Otis Redding, James Brown e Stevie Wonder eram as maiores referências dos músicos negros nos anos 1970, e foi na voz de Tim Maia, seu amigo e “síndico do brasil”, para usar o apelido que Jorge Ben tinha dado a ele, que Cassiano foi apresentado ao mundo, com a música de sua autoria “Primavera (Vai Chuva)”. Lançada nos anos 1970 e impregnada com aquele sentimento de amor perdido, a música é cantada até hoje.

Cassiano era o legítimo quebrada romântico, digamos. Se você nunca se pegou, numa tarde fria, solitária, pensando na morena e cantando “sei que você gosta de brincar/ de amores/ mas ó/ comigo não/ comigo não”, você não sabe o que é sofrer por um amor não correspondido. Esses versos da música “Coleção”, de Cassiano, fizeram sucesso em seu lançamento, em 1976, em 1995, na voz de Ivete Sangalo ainda como integrante da Banda Eva, e em 1999, numa versão pagode do grupo Pixote.

Capa do álbum ‘Cuban Soul: 18 Kilates’, de Cassiano, de 1976 – Reprodução

Negro ser romântico era novidade naqueles anos 1970. Roberto Carlos, Ronnie Von e Jerry Adriani eram românticos mais atraentes para a cena musical da época do que Cassiano, Tim Maia e Hyldon. Quando os negros falavam de amor, eles iam além do romance. Vai ver por isso que uma das edições do jornal do Movimento Negro Unificado, o MNU, criado em 1970, trazia a frase “beije sua preta em praça pública”. O negro romântico existia, e Cassiano era um deles.

Gilberto Gil, Alcione, Marisa Monte e Djavan foram apenas alguns que gravaram e fizeram sucesso com músicas de autoria de Cassiano.

O ostracismo, suas brigas com as gravadoras e a triste derrocada precoce de sua carreira o fizeram deixar de ser referência para o público para virar referência para os músicos, e só. Em entrevista recente a este jornal, Hyldon disse que Cassiano “é uma história de querer sumir, não querer saber de nada”. “E, ao mesmo tempo, está produzindo, o que é um contraste. Mas ninguém consegue saber onde está o Cassiano. Acho que nem ele mesmo sabe.”

Na periferia, sua voz sempre estará em nosso inconsciente, seja na abertura de um show dos Racionais MCs com a música “Onda” ou em uma roda de samba do Pagode da 27. Sofrer por amor e manter a cara de mau é uma das coisas que aprendemos com Cassiano.

Um dos pais da soul music brasileira, presença constante no rap, Cassiano se foi aos 77, mas sua voz já estava silenciada havia anos. Pouco o procuramos, pouco o queríamos ouvir, não nos importamos com quem deveria ter tido muito mais reconhecimento na música popular brasileira. Quem será o próximo?