David Coimbra: “Gostar de quem não gosta de mim” (Zero Hora)

Eu e o meu amigo Nique, as nossas irmãs se chamavam Silvia. Chamam-se ainda, mas falo no passado porque essa história aconteceu quando eu e o Nique tínhamos uns 11 anos de idade, e as nossas irmãs nove. Deu-se que eu namorava a irmã dele, a Silvia Lemos, e ele a minha, a Silvia Coimbra. Namorar, maneira de dizer. Afinal,
nós tínhamos 11 anos e elas nove, e naquele tempo a criançada não via a Maria Casadevall deitada de bruços com-ple-ta-men-te nua na novela das nove, e isso de sexo era algo muito mais misterioso.

Então, o nosso namoro era pegar na mão e dar voltas pelo bairro lado a lado, e nada mais. O que não me impedia de estar melecadamente apaixonado pela minha Silvia. Eu a amava. Sim. Queria passar todo o tempo com ela.

Uma vez, eu e o Nique economizamos algum vendendo jornal e garrafa e conseguimos comprar uma bola em sociedade. Uma linda bola número 5 costurada à mão por algum presidiário. Todas as tardes íamos jogar lá no Alim Pedro. Só que, quando chegava a noitinha, queríamos ver as nossas pequenas. Um problema, porque os outros guris não queriam, de jeito nenhum, parar o joguinho. Assim, traçamos um plano: um de nós, eu ou o Nique, chutava a bola para longe, na direção da Industriários, e saíamos os dois correndo para pegá-la. Então, colhíamos a bola do chão e seguíamos correndo para casa, com o resto dos dois times atrás de nós, gritando a bola!, a bola!

Fazíamos tudo pelo amor.

Uma noite daquelas, depois do jogo e de tomar banho, eu e o Nique resolvemos fazer uma surpresa para as nossas coisinhas. É que nós sempre íamos para uma das nossas casas ler gibi e ouvir música pela Itaí, A Dona da Noite. Era o ponto alto do namoro. Mas naquela noite fizemos algo especial: fomos ao orelhão da esquina, ligamos para a rádio e oferecemos uma música para elas. Cara, até hoje lembro
da nossa expectativa, enquanto o locutor não citava os nossos nomes. As gurias começavam a falar alto e nós:

– Peraí, só um pouquinho, escuta o que o cara da rádio tá falando.

Uma delas queria ir ao banheiro e nós:

– Agora, não. Espera um pouco. Vamos ouvir aqui o rádio…

E o desgranido não falava nunca. Nós naquela tensão, o programa chegando ao fim, as gurias impacientes, já querendo ir para a cozinha comer ambrosia, e nós espera um pouco, vamos ouvir mais o rádio, peraí…

Até que ele falou:

– E agora… Agora, o David e o Nique oferecem para suas gatinhas, as Silvias… de Hyldon,Na Rua, na Chuva, na Fazenda. E…

“Não estou disposto

A esquecer seu rosto de vez

E acho que é tão normal…”

As gurias:

– Uóóóóó…

Desmontaram-se de amor. E, pela primeira vez, nós ganhamos beijos
de verdade. No rosto. Mas de verdade. Dizem que sou louco por eu ter um gosto assim, gostar de quem não gosta de mim. Obrigado, Hyldon.

ZERO HORA – David Coimbra